Parede, 1972. Nasce o Conde Mamute Brancaamp Sobral y Sandwich, exactamente no dia seguinte a um mês qualquer de Março. Aos dois anos de idade, entre ratos e falta de higiene, este filho de mãe incógnita e de pai ainda-por-nascer, foi surpreendida pelo 25 de Abril, pois que só sabia contar até 24.
Em vista da situação extremamente precária dos seus aristocráticos progenitores e eternos parentes da Casa de Bragança, o Conde foi viver com a avó paterna que acabara de dar à luz o pai. Durante três longuíssimos segundos, ensinou-lhe a avó tudo quanto hoje sabe— a inocência mansa de umas mãozinhas infantis a esganar o pescoço a um ganso, a destreza que há num arroto de um sheik islâmico, o esplendor de lixo dos produtos Planeta Agostini, e a largueza barata de um arco-íris a rodopiar na boca da Teresa Guilherme.
Entretanto, a bisavó de Mamute, a condessa Maria Bizantina Brancamp Sobral y Sandwich, uma velhota decrépita de 27 anos, deixara-se seduzir por um cigano ciborgue de baixo custo que abundava na praia de Carcavelos, e horrorizada com a Revolução dos Cravos, foi viver com o amante numa grande capital europeia, mais precisamente ali para os lados do Alto do Pina.
Mais tarde, já homem feito, o Conde Mamute comprou em segunda mão quatro pneus Goodyear e, à força de muita pancada, transformou a avó num branco carro de gelados. Posto que o negócio lhe tenha corrido de feição todos estes anos, ainda hoje tem saudades daquela que o educou, arborizou, acarinhou, capou, adorou, cascabulhou, baptizou, catalogou, banhou, cavalgou, celebrizou, chafurdou, carregou, afagou, chateou, cheirou, chicoteou, chorou, ajudou, e dele cuidou e chupou durante três segundos a fio—o cigano ciborgue da praia de Carcavelos.
Sempre de atalaia, este blogue decidiu enviar ao local o repórter em loop permanente Sarja Akhmani, o das mil faces, desta feita sob a opaca identidade de Norberto Chuang Faria, com a finalidade de entrevistar este Brancamp Sobral formado no colégio alemão dos dejectos domingueiros deixados pelos veraneantes.
Chuang Faria (C.F.) — Muito boas tardes, Sr. Conde Mamute Brancaamp Sobral y Sandwich. A sua cara não me é de todo estranha. Tudo bem consigo e com a vossa excelentíssima família?
Conde Mamute (C. M.) — Bem-haja eu! Com mil raios, cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas…
C.F — Essa expressão aparece numa canção do Sérgio Godinho. Gosta de Sérgio Godinho?
C. M. — C´os diabos, cá na vizinhança nunca ouvi falar de Absorção Interstelar, nem de Aristarco de Samos…Aqui não há nada disso, o pessoal dá-se todo muito bem, graças a Deus. De mais a mais, nunca vi esse tal de Sérgio Gordinho nem mais gordo nem mais magro. No entanto, posso mudar repentinamente de ideias e dizer-lhe que já o vi aqui deitado na praia com uma gaja boa ao lado. Nunca se sabe…Tem piada, as suas fuças também não me são de todo estranhas….
C.F.— Muda muito facilmente de ideias?
C.M. — Nada disso! Está muito enganado! Deixe-me dizer-lhe que sou mais teimoso que o mais casmurro dos burros. Você faz-me lembrar alguém que em tempos conheci…Não importa…Ainda há três minutos, teimei com o Ti Manel da Redoma Verde que a terra era redonda e acabei agora mesmo de chegar à conclusão que isto anda tudo muito quadrado dos cornos…
C.F — Mesmo assim, continuo a pensar que o Sr. Conde muda muito rapidamente de opinião…
C.M. – Mas isso é um absurdo! AH! AH! AH! Eu mudar facilmente de opinião…Você dá comigo em doido…Que disparate! Não, sim, não, sim, mudo muito rapidamente de ideias. Porquê?
C.F. – Por nada. Apenas curiosidade. Como vai o negócio dos gelados?
C. M. --Quanto aos gelados, a coisa vai de avó em popa.
C.F — A propósito de avó: já alguma vez a condessa sua avó se queixou de a ter transformado num carro de gelados?
C.M. — Nuuuunca! Bom, certa vez a gaja levantou alto a cabeçorra loura dos Sandwich da Parede, abeirou-se dos intelectuais cá da zona, atestou o depósito cerebral com meio litro de conceitos, afiou as unhas brancas de nobre animalidade e travou, a súbitas, várias polémicas nos jornais com o José Gil, o Eduardo Prado Coelho, o Eduardo Lourenço e a Teresa Guilherme…O diabo! Essa ficou-me de lição…
C. F.—A sério?
C.M.— Palavra!
C.F.— Que maçada…
C.M.— Que parva!
C.F.— Que mulher!
C.M.— Que Minerva!
C. F.— Que Eva!
C.M.— Uma questão de lana-caprina, afinal. Ela dizia que sim e o José Gil que não, que não era nada daquilo, e ela “ora toma que daqui não levas nada”, e o José Gil “dá-me cá aquela palha que não sabes com quem é que estás a falar”, e eu “mas que é que se passa com vocês? e eles, em uníssono, “não se passa nada, não metas o bedelho onde não és chamado, raios partam o teu bedelho, raios partam aqueles que disseram raios partam o teu bedelho"...Enfim, uma interminável discussão em torno do conceito de “bedelho em si e para si” em Kant, Hegel e Meinong…
C. F.—A sua fisionomia não me é de todo estranha…Como é que tudo isso acabou?
C.M.— Eu cá não estive com meias medidas e enfiei-lhe imediatamente nas fuças malcheirosas um par de estalos em dolby surround, um pontapé na boca e um rabanete no rabo. Daí para cá, nunca mais abriu o bico.
C.F.— Humano, como sempre. Como se enquadra Vossa Excelência no actual panorama de oferta de rabanetes religiosos?
C.M.— Olhe, ainda há dias comprei uma garrafita de Catolicismo ao Ti Manel da Redoma Verde, mas aquilo vinha tudo furado por dentro e por fora...
C.F.— Acha que terão sido os ratos que abundam na habitação de Vossa Excelência quem roeu a rolha da garrafa?
C.M.— Nada disso! Que disparate! As coisas não são assim tão simples…Por quem me toma você, afinal? Pensa que sou parvo e deixo os ratos à solta? Aquilo está tudo sob controlo, ouviu? Hum...Pensando melhor, tem toda a razão: foram os ratos lá de casa.
C.F.— Posso então concluir que Vossa Excelência ainda é católico?
C.M.— Claro que sim! Vou todos os domingos à missa trocar gelados por calos de padres. Aliás, já há muitos anos que faço colecção de qualquer coisa. Espere…Acabei agora mesmo de sentir uns pechisbeques nos tomates…Uma tontura esquisita...Cheguei a pensar que ia cair para cima, em direcção às nuvens…mas não foi nada que.
C.F.--Como?
C.M.— As coisas são assim mesmo. Ainda que. A não ser que. Vocês estão sempre a. Às vezes ponho-me a pensar que. Afinal, anda aqui um homem a. Raios partam o Ti Manel, o tal que. Por outro lado, que sabem vocês, os? Ouvi dizer que vocês estão sempre a. E quando não. Está a ver como é que?
C.F.— Sim, estou a ver…
C.M— Além dixo, se voxi soubexi o que eu xinto quando.
C.F.— Que se passa? Sente-se bem, senhor Conde Mamute?
C.M.— Não se paxa nada. Chiça! Parece que o Ti Manel da Redoma Verde se enganou no diacho da garrafa…Afinal, o palhaxo vendeu-me a garrafa do Xiismo…Agora sou xiita…
C.F.— Que tem um xiita da Parede que os xiitas do mundo inteiro não tenham?
C.M.— Chiu! Caluda! Todo aquele que manda calar ox outrox é um xiita da Parede. Chiu um xiita, perxebe? Além disso, falamos axim. Chiu, agora xou xiita, perxebe? Me xiita xou, perxebe? Chiu, xiita, me xiita sou. Ou seja: xiita xou-me, perxebe?
C.F.— …
C.M— Outra característica dos xiitas: fazer dos xilenxiados inimigos por tudo quanto é xítio…
C.F.— Inimigos!?
C.M.— Xim, chiu, caluda, agora sou xiita, ouviu? Inimigos? Felixmente temo-los em muitox xítios. Quer exemplos? Os hititas da Buraca, os albigenses do Alto do Pina, o efeito Doppler na boca da Teresa Guilherme, os índios Hopi de Odivelas, os artrópodes e os branquiópodes que escrevem sonetos monossilábicos na Amadora, o sistema hexadecimal do caranguejo fónix da silva, os sunitas do Estoril e os ahamaricanos que se não foxe o Buxe xeriam xertamente muito mais, tá a ver?
C.F.— Estou a ver…
C.M.— Xim, não, nim, não, xim, talvez, ouviu?div>
C.F.— Vem a meus braços, Mamute, aliás, Maria Clara, minha rica filha….
C.F— Sr. Conde…
C.M.— Caluda, pá, estou a penxar!
C.F--…
C.M-- Axo que vou fazer como esse tal de Sérgio Gordinho e fundar uma banda de gordinhos que divulgue os ideais xiitas…Uma banda gástrica que dê nas vistas e vá à televixão…Uma coisa digna de se ver. Que te parece, ó filho da luz?
C.F.— Já posso falar, Sr. Conde?
C.M.— Abre lá a torneira…
C.F.—A sua cara….
C.M— Xim, já sei! Deixa-me em paz. Que pretendes de mim?
C.F.— Qual é o seu verdadeiro nome?
C.M— Já disse e repito: xou o Conde Mamute Brancaamp…
C.F.— Qual conde, qual carapuça! Tu és a Maria Clara Varas Verdes de Miguéis, a minha rica filha!
C.M.— Como!? Parece que é parvo...
C.F.— Sim, tu és a Maria Clara, a minha filha…
C.M.— Olha, vai chamar pai a outro…
C.F.— Lembras-te das intermináveis discussões que tínhamos cá na praia, entre os dejectos dos domingos e a dejecção das segundas-feiras, em torno das contradições da Teoria da Relatividade do Einstein?
C.M.— Einstein? Tás maluco, pá! Desse gajo nunca falámos. O que sempre constituiu o pomo das nossas discórdias foi a Teoria Quântica do Eisenstein…
C.F— Ma-Mamute Brancamp Sobral y Sandwich, aliás, Maria Clara…Tens toda a razão, minha filha…Era do Eisenstein de quem falávamos…
C.M— Em todo o caso, também nos fartávamo de gozar com a fuga do Eisenstein para os Estados Unidos, como se os nazis lhe quisessem fazer algum mal…Aliás, está provado que o Holocráustico nunca existitu....
C.F.— Tens toda a razão, Maria Clara…
C.M.— Espera lá…Não és tu o tal idiota que julga ter criado uma teoria do Euromilhões com base nas teses do Edward de Bono e que ainda para mais diz ser a minha mãe piano ciborgue?
C.F.— Xim, não, xim, não, xim, não!
C.M— Que queres dizer com isso?
C.F.— Piano ciborgue!? Cigano, filha, sou a tua mãe cigano ciborgue.
C.M— Sim, o tal cigano ciborgue…
C.F.— Sim, sou o Norberto Chuang Faria, tua mãe…
C.M.— Sendo assim, vem a meus braços, Norberto Chuang Faria, minha mãe!
C.F.— Vem a meus braços, Mamute, aliás, Maria Clara, minha rica filha….
Sarja Akhmani, repórter iraniano
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